Reunião IASFA 26.09.2012

Publicado em 26 de setembro de 2012

Reunião IASFA 26.09.2012

Eram dois jovens de origem humilde que viviam pelas ruas fazendo pequenos serviços que lhes garantiam a sobrevivência necessária. O mais jovem, com apenas treze anos, chamava-se Eduardo. O outro, já com dezessete anos, chamava-se Evaldo. Viviam eles entregues à bondade dos passantes que, em troca de pequenos favores, lhes davam pequenas quantias com as quais sobreviviam. Não tinham um lar para onde voltar ao final do dia, por isso, dormiam pelas calçadas, como tantos outros. Durante o dia, Eduardo, o mais inconformado com toda aquela situação, corria

de um lado para o outro, buscando, de alguma forma, encontrar um meio que lhe possibilitasse ganhar um pouco mais e, assim, ter mais conforto, comer um alimento melhor. Em razão disto, não media esforços em ser útil a quem quer que fosse, chegando ao ponto de discutir, brigar com outros parceiros para dominar determinadas áreas que fossem mais promissoras. De outro modo, Evaldo, mais comedido e acomodado, vivia a lamentar-se daquela situação, dizendo a todos que era um infeliz, que não merecia essa vida. Fazia somente aquilo que lhe fosse solicitado, sem atentar para suas necessidades e, muito menos, para fazer aquela tarefa de modo satisfatório. Fazia por fazer. Aos olhos do solicitante, era um infeliz, que agia de má vontade. E, assim, se passavam os dias, até que, abordados por integrantes de quadrilhas que dominavam a região onde viviam, Eduardo e Evaldo foram requisitados para com eles  trabalharem, ora distribuindo tóxicos pelas esquinas, ora vigiando a ação de outras quadrilhas e, até mesmo, dos policiais que, porventura, aparecessem naquele local. Em troca, receberiam uma boa quantia, roupas e calçados novos, boa alimentação, enfim, teriam uma condição de vida melhor. Tudo seria mais fácil, mas tremendamente perigoso. Após conversarem entre si, medindo os prós e os contras, Eduardo resolveu dizer não àquele convite sendo, por isso, expulso daquela localidade. Não se revoltou, pois sabia que aquela era a lei que vigorava e que não adiantava contrariá-la. Diante disso, fugiu para lugar distante, desta feita, para um município vizinho. Quanto a Evaldo, preferiu aceitar o convite o que provocou a separação dos dois, doendo muito no coração de ambos. Mas era a lei da vida que se impunha. Evaldo passou, então, a receber ordens de outras pessoas, a fim de que fizesse o que lhes convinha. Às vezes, ia levar drogas para venda no asfalto, outras vezes, ficava de plantão durante toda a noite vigiando e defendendo a região de pessoas estranhas. Aprendeu a lidar com armas de fogo, exercitou-se para aprender a lutar. Acostumou-se a viver na corda bamba. Por vezes, era confrontado pelo medo, pelo desespero, pela angústia provocada pelo assédio de outras gangues e, até mesmo, pelo cerco dos policiais que vinham cumprir seu dever. Não tinha para onde fugir. Era a lei do tráfico obrigando-o àquelas situações. A sua escolha pelo caminho mais fácil cobrava-lhe esses sacrifícios. Afinal, a porta larga esconde atalhos que levam ao sofrimento e o resultado é, quase sempre, decepcionante. Mas, a vida precisa continuar e Evaldo ansiava por dias melhores, apesar das chances serem ínfimas.

Eduardo, contudo, continuava na sua vida, agora em outro local mais calmo, porém, com as mesmas dificuldades. Vivia pelas ruas, trocando favores por algumas moedas, dormia ao relento, alimentando-se de sobras, vestindo-se de roupas que eram doadas, enfim, sobrevivendo à custa da ajuda alheia. Numa de suas rondas, conheceu Faísca, um cão vira-lata, que logo também o adotou. Apiedado, Eduardo passou a levá-lo em sua companhia onde quer que fosse. Muito esperto, Faísca também dedicava-se a Eduardo, guardando-o contra o ataque daqueles que lhe quisessem o mal. Viviam um para o outro, dividindo a pouca comida que Eduardo conseguisse, dormindo na mesma cama de papelão.

Certo dia, enquanto Helena levava seu cão para um passeio matinal, Eduardo e Faísca, ainda acordando para mais um dia, tiveram a sua atenção voltada para ela e seu cão. Quando passavam diante deles, os cães   começaram     a    trocar carícias e   pequenos latidos,    mostrando empatia. Surpresa, Helena tentou desviar-se daquele caminho, porém, os cães, como se já se conhecessem, resistiam à separação. Eduardo, ralhando com Faísca, a muito custo  conseguiu retê-lo. No dia seguinte, Helena, passeando na pracinha com o seu cão, de novo encontrou aquela dupla maltrapilha. Percebeu, contudo, que Eduardo não tinha má índole. Percebera que, apesar de ter vida incerta, ele não era má pessoa. Logo, começou uma bela amizade que, com o tempo, adquiriu consistência, a ponto de Eduardo passar a prestar alguns serviços na casa de Helena. Às vezes, fazia pequenos consertos, pintava, cuidava do jardim, enfim, foi ganhando a amizade de toda a família. Depois de algum tempo, Helena ofereceu a Eduardo a oportunidade de voltar a estudar. Poderia matricular-se no curso de ensino médio que abandonara, e, após, seguir o curso que desejasse, tudo custeado pela família de Helena. Diante desta oferta, Eduardo, sentindo em seu íntimo uma alegria indizível, pôs-se a chorar e, agradecido, ajoelhou-se aos pés de Helena e aceitou o convite, deixando claro que, doravante, faria todas as tarefas graciosamente. Helena, contudo, não deu importância a esta observação, pois ela sabia que Eduardo, além de precisar do fruto de seu trabalho, estava apenas demonstrando sua forma de agradecimento. Agarrando esta oportunidade com afinco e dedicação, Eduardo reiniciou seus estudos e, depois de algum tempo, escolheu o curso de medicina. Sabia-o difícil e caro, mas não se conteve e, buscando trabalhar em alguma atividade, procurou contribuir para seu custeio, a fim de que a família de Helena não se sentisse sobrecarregada. Helena, por sua vez, entendeu a preocupação de Eduardo e, procurando tranquilizá-lo, disse que não precisava encarregar-se de mais essa responsabilidade. Além disso, Helena providenciou para que Eduardo ficasse morando num pequeno quarto que havia nos fundos da sua casa. Tudo isso serviu para que Eduardo se perguntasse porque estava sendo tão ajudado. Afinal, vinha de uma origem humilde, não tinha qualquer perspectiva de retribuir a tanto auxílio, pelo menos, no momento. Firmando seu pensamento, procurou cultivar bons sentimentos e voltou-se para seus estudos. Acomodou-se no pequeno quarto, sem se esquecer de Faísca que continuava-lhe fiel. Esforçava-se para conciliar suas tarefas com os estudos. Conseguira um trabalho perto da faculdade, de modo a aproveitar melhor o tempo entre o trabalho e a faculdade. Contava, agora, com vários amigos dos quais obtinha ajuda e apoio. Sentia que precisava fazer alguma coisa para demonstrar sua gratidão a Helena e seus familiares. Com muito zelo, Eduardo progredia em seus objetivos. Após alguns anos de dedicação e estudo, Eduardo concluiu o curso de medicina. Na formatura, fora escolhido o orador e, durante seus votos de formando, não se esqueceu de reverenciar e agradecer a ajuda e o apoio de Helena e sua família. Compreendia, agora, que o merecimento possibilita que pessoas possam ser ajudadas por outras, mesmo que essas pessoas não sejam, de algum modo, afins ou, ainda, parentes. A conquista do caminho que a vida disponibiliza a cada um se deve, antes de tudo, ao merecimento e, depois, à perseverança e dedicação que cada um devota na sua persecução. Dessa forma, Eduardo foi fazer residência médica em um grande hospital na cidade de São Paulo. Por conta disso, necessitou mudar-se para esta cidade, tendo que deixar a casa de Helena a quem ficou eternamente agradecido. Faísca, sem poder acompanhá-lo, ficou vivendo na casa de Helena junto com seu outro cãozinho. Já instalado, Eduardo começou a trabalhar com afinco na profissão que adotara. De início, foi colocado no setor de emergência do hospital, onde começou a ter experiências, ao mesmo tempo dolorosas e proveitosas no que diz respeito a sua profissão. Muitas vezes, sentiu-se enfraquecer diante de cenas dantescas. Noutras vezes, o cansaço extinguia suas forças por tanto que fizera durante sua jornada diária. Durante alguns anos dedicou-se, adquirindo grande experiência. Entretanto, Eduardo sentia necessidade de aprofundar-se em seus estudos. Diante disso, requisitou sua saída desse setor, pedindo para ir para outro onde pudesse ter tempo também para estudar. Atendido, foi trabalhar no setor cardiológico, quando se interessou  por microcirurgia.  Dificuldades  apareciam como, por exemplo, a pesquisa e a leitura de livros em outros idiomas. Sem contar com muitos recursos, Eduardo procurava a ajuda de amigos. Aos poucos, conseguia vencer as barreiras do caminho e, com perseverança e otimismo, alcançava os objetivos que almejava. Em momentos de reflexão, Eduardo percebia o quanto a sorte lhe foi favorável, pois, apesar de sempre lutar com garra e resignação perante as dificuldades naturais de sua jornada, jamais desistiu ou esmoreceu. Teve, sim,  instantes de desânimo, mas logo se recuperava quando via a seu lado outros tantos que, mesmo em melhores condições do que ele, se deixavam vencer pela derrota de uma simples batalha, entregando-se ao vício ou à depressão. A vida não dá folga, principalmente, aos que se deixam vencer pela falta de fé na renovação de suas próprias forças, de sua própria torpeza. Pensando nisso, Eduardo lembrou-se de Evaldo. Onde, o que estaria ele fazendo?

Deitado no chão sujo de um barraco no alto do morro, Evaldo, vencido e entregue aos desvarios de uma vida sem viço, amargava mais uma derrota, pois que na noite anterior havia perdido uma grande quantidade de drogas que não lhe pertenciam, além das armas que mantinha sob guarda. Amargurado, não sabia como prestar contas aos seus superiores que, a esta altura, já o estavam procurando na comunidade. Zilão, temido traficante chefe daquela área, já tomara conhecimento dos desmandos de Evaldo e ordenara a sua caçada porque não admitia perder tanto dinheiro. Sem ter para onde ir ou a quem recorrer, Evaldo intentava esconder-se naquele barraco. Mas  sabia que, mais cedo ou mais tarde, seria descoberto pelos comparsas de Zilão. Lastimava ter chegado àquela situação. Passava fome, não tinha em quem confiar, perdera contato com Eduardo, suas amizades eram aquelas com quem dividia suas tarefas no morro. Temia por sua vida, nada lhe era mais importante do que manter-se vivo, apesar de ter escolhido a porta aberta, que o levou para o caminho mais difícil. Estava sem esperanças, a fome doía-lhe o estômago, o coração pulsava forte entre o medo e saudade do tempo em que podia olhar para o céu estrelado e contá-las despreocupadamente. Sentiu correr pela face uma, duas lágrimas. Seus pensamentos acelerados estavam vigilantes, sem espaço sequer para uma trégua que lhe pudesse dar um novo ânimo. Entretanto, em meio a tanto burburinho, ouviu alguém, um passante, cantarolar uma cantiga que lhe fez lembrar-se de sua infância, de sua mãe que, mesmo doente sobre um leito, costumava cantar para acalmá-lo nos momentos de medo e aflição provocados por seu pai quando adentrava sua casa embriagado, praguejando e gritando feito um alucinado. Fechou os olhos e deixou que esse sentimento bom invadisse e tomasse conta de sua mente, de seu peito. Aos poucos, foi relaxando e adormeceu de novo. Em segundos estava, outra vez, no colo de sua mãe que lhe dizia: “filho, não esmoreça, reaja, o pior do caminho já está passando. Os enganos cometidos que produziram esses resultados devem agora ser momentaneamente olvidados. Precisas agir com pressa, a fim de recuperar teu equilíbrio. No momento, não há muito o que fazer para diminuir o efeito desastroso de tua atitude em relação não só a ti como também aos demais. Vai agora e busca um lugar longe daqui onde possas sentir-se em segurança. Estou orando por você, tenha fé que nova oportunidade lhe será dada. Procure, no entanto, não se enganar desta vez e, lembre-se, a sua dívida ainda precisa ser resgatada e eles vão lhe cobrar. Peça ajuda na Igreja da Matriz e não tema.” Assustado, Evaldo acordou e, súbito, colocou-se de pé. Sem saber muito o que acontecia, seguiu em direção à Igreja da Matriz onde encontrou vários fiéis que, surpreendidos, pararam de orar e indagaram dele quase que, em uníssono, o que desejava. Ele, pausadamente e medindo as palavras, pediu socorro. Disse que estava sendo perseguido e que precisava ir para bem longe dali, que alguém, de alguma maneira, o ajudasse. Ouvindo isso, o Vigário aproximou-se e colocando o braço sobre o seu ombro, o levou para a sacristia, a fim de ouvi-lo. Após um relato sucinto sobre sua história, Evaldo ouviu do padre que lhe daria a ajuda necessária. Disponibilizando uma certa quantia em dinheiro a Evaldo, o padre o aconselhou a viajar para um outro estado e lá buscar ajuda na Igreja local. Disse que mais não poderia fazer, a não ser dar-lhe algum alimento e permitir que se abrigasse na Igreja até a hora propícia para fugir daquela comunidade. Assim, por volta da nove horas daquele mesmo dia,   Evaldo seguiu para a rodoviária onde comprou uma passagem de ida para a cidade de São Paulo. Durante a viagem, teve tempo para refletir sobre sua vida, sobre sua triste história decorrente de uma má escolha feita sob a ilusão da promessa de um caminho cheio de riquezas, conforto, tudo conseguido sem esforço, sem nem pensar no porquê de tanta facilidade. Agora sabia que o tesouro da verdadeira vida só seria conseguido a troco de muito trabalho fincado na perseverança, no esforço e na dedicação, além do merecimento que a todas as ações governa. Às seis da manhã do dia seguinte, Evaldo já estava perambulando pelas ruas da cidade de São Paulo. Aliviado pela distância e sentindo-se agora um pouco mais seguro, dirigiu-se à Igreja mais próxima. Lá chegando, entrou, mas o padre ainda não havia chegado. Sem ter para onde ir, sentou-se e aguardou. Enquanto esperava, seus pensamentos pulavam de um lado para o outro, ora lembrando-se dos momentos terríveis que vivera naquele morro, ora tentando entender porque seguira aquele caminho. Não entendia porque se deixara levar por essa estrada. Lembrou-se de Eduardo quando recusou o convite. Será que ele seguiu por um caminho melhor? Absorto em suas lembranças e indagações não percebeu quando o padre passou por ele. Após algumas horas de espera, Evaldo foi de novo procurar pelo padre que, então, o atendeu. Dizendo-se encaminhado pelo padre Geraldo da Igreja da Matriz do Rio de Janeiro, contou ao padre Antonio sua história. Este, ao ouvir tão insólito relato, afirmou que pouco poderia ajudar. Pediu que Evaldo aguardasse e que voltasse após uma semana para ver se já teria, então, conseguido alguma ajuda, algum trabalho que pudesse fazer. Decepcionado, Evaldo saiu às ruas. Já era mais de meio dia. Sentia fome. Seu coração repentinamente se apertava. Para onde ir? Onde ficar? Enquanto caminhava, o medo foi lhe abraçando. Sentiu seu corpo tremer. Sua mente ia ficando cheia de maus pensamentos, seu peito cheio de maus pressentimentos. Precisava correr, esconder-se. Quem sabe já não me descobriram, pensava… Seus olhos, de tanto pavor, corriam de um lado para outro. Sua cabeça virava quase que automaticamente buscando quem pudesse estar lhe observando. Desenvolvera subitamente uma neurose de estar sendo perseguido. Com muita sofreguidão exclamou: “Pai, ajuda-me!” Em desabalada carreira, Evaldo corria em direção qualquer, pois nem mesmo sabia em que bairro ou local da cidade estava. Cansado, deixou-se cair sobre um gramado à beira de uma grande avenida. Ali, adormecera. Pela manhã, acordou sob o som agudo de uma sirene de uma ambulância que passara. Tentando erguer seu olhar para o alto, deparou-se com uma luz intensa que ofuscou-lhe a visão. Sua cabeça doía. Era por volta do meio dia. O Sol queimava-lhe a pele. Precisava levantar-se, ir a algum lugar, encontrar o que comer, o que beber, uma ajuda. De longe, viu que havia do outro lado da avenida, após um valão, um pequeno comércio. Seguiu naquela direção e lá chegando começou a esmolar. Após algum tempo, conseguiu alimentar-se. Pediu ajuda, algum trabalho, lavar um carro, enfim, alguma coisa que pudesse lhe render algum dinheiro. Porém, não conseguia. Veio a noite e, outra vez, pensamentos macabros invadiram-lhe a mente. Seu coração disparou. Suas forças acabaram. Prostrado, rendeu-se. Ao longe, começou a ouvir vozes. De olhos fechados, aguçou os ouvidos na tentativa de ouvir o que diziam. Dois homens que se aproximavam diziam estar procurando por alguém que lhes havia roubado. Sentindo um frio intenso invadir sua alma, Evaldo foi ficando apavorado. Tentou esconder-se mas, cada vez mais alto, ouvia as vozes dos homens. Eles praguejavam, xingavam e, rindo, diziam que se encontrassem aquele tresloucado que iriam fazê-lo devolver tudo o que havia sido roubado e que depois iriam matá-lo jogando-o do alto do viaduto. Ouvindo tudo aquilo cada vez mais perto dele, Evaldo levantou-se e saiu correndo tão desesperadamente que os homens começaram a correr atrás dele, pedindo que parasse. Evaldo sem atender continuou a correr. Então, os homens sacaram de suas armas e atiraram. Três balas alcançaram-lhe o corpo, uma delas ferindo-o gravemente na região do esterno. Evaldo caiu sobre o chão molhado do asfalto. Era uma noite fria, úmida. Os homens se aproximaram do corpo de Evaldo e, antes que pudessem se vangloriar de terem conseguido dar cabo do tal tresloucado ladrão, perceberam que Evaldo não era quem devesse ser. Apavorados, os homens fugiram sem, ao menos, prestarem socorro. Temiam por sua segurança. Afinal aquela era uma região habitada e os curiosos já se aproximavam. Ao chegarem, perceberam que Evaldo ainda respirava, com dificuldade, mas estava vivo. Chamaram a ambulância que logo apareceu e prestou os primeiro socorros, levando-o para o hospital da região. Evaldo pagara por seus débitos, ainda que os algozes não tenham sido aqueles a quem diretamente lesou. As forças ocultas sabem como fazer para cobrar seus débitos. Ninguém passa despercebido. Nem mesmo aquele que sabe dever, desconhece que, dia mais dia, terá de pagar. É a lei de causa e efeito em ação. Mesmo que o depois demore a chegar, um dia chegará. E Evaldo sabia disso, tanto que não conseguiu viver em paz um só instante após ter lesado seus comparsas, ainda que esses detivessem bens que não lhes pertenciam.

No hospital, principalmente na emergência, médicos, enfermeiros, pacientes se misturavam em meio ao barulho incessante dos gemidos e gritos de socorro que ecoavam por todo o ambiente. Nervosos, os enfermeiros se agitavam ao mais leve zumbir da sirene da ambulância. Logo se colocavam prestos a realizar a tarefa de remoção de algum paciente grave para o interior do hospital. Uns vinham vítimas de um mal súbito qualquer, outros chegavam vitimados por uma arma qualquer. Evaldo chegou vitimado por três tiros. Os enfermeiros imediatamente o colocaram na maca e o levaram para a sala de cirurgia, a fim de tentar preservar sua vida. Evaldo a tudo assistia, embora sua mente não assimilasse o que se passava. Sentia seu corpo inerte, porém respirando. Não divisava dor, mas percebia que não podia levantar-se, caminhar. Os médicos, acostumados com este tipo de acontecimento, logo iniciaram o procedimento devido. Soro, tomografias, ar, exames de sangue, detecção de consumo de drogas, álcool, enfim, todo um preparatório para uma intervenção cirúrgica que se fazia cada vez mais necessária, face a rápida falência da vida que por parcos recursos ainda se mantinha. Evaldo chorava. Não podia falar, saber o que estava acontecendo. Lembrava-se que apenas correu para fugir. No mais, tudo lhe era novo, diferente. Por que tantas pessoas em volta de meu corpo? Por que estou aqui e meu corpo está lá? Será que eu morri? Os médicos então começaram a aplicar em Evaldo a anestesia para preparar seu corpo para a cirurgia. Após alguns minutos, o corpo de Evaldo começou a ser cortado na altura do tórax, no lado esquerdo mais precisamente. Uma pequena incisão na altura do ombro, um pouco abaixo perto da mama direita e lá estava a bala, alojada entre o esterno e o pulmão. Felizmente, o coração estava preservado. Os médicos, cuidadosamente, tentaram retirá-la. Porém, ao mexerem no projétil perceberam que este havia atingido uma importante artéria. Receosos de remover a bala sem prejudicar aquela artéria, tiveram que apelar para um microcirurgião.  Chamado às pressas, Dr. Eduardo logo adentrou a sala de cirurgia e dedicou-se à tarefa para a qual fora chamado, sem se dar conta de que paciente se tratava. Identificando toda a problemática, logo iniciou o procedimento que, no caso, tratava-se da colocação de uma ponte, a fim de fazer com que a corrente sanguínea contornasse o local onde se alojou a bala, permitindo sua retirada sem afetar a artéria. Após algumas horas de minucioso trabalho, Eduardo conseguiu sacar a bala do local onde estava. Evaldo, contudo, ainda não estava a salvo. Sua saúde, de um modo geral, estava debilitada. A má alimentação, o estresse por que passara quase todos os dias, a falta de um local onde estabelecer-se, tendo que passar dias e noites ao relento, o consumo desregrado de álcool, tudo isso contribuiu para que as taxas que regulam o equilíbrio físico ficassem desniveladas, além da pressão alta constante que lhe causava transtornos cardiológicos e mentais. Por conta disso, Evaldo precisou ser internado na UTI sob coma induzido, fazendo uso de remédios que controlavam seu estado geral. Após, um período de descanso, já no dia seguinte, Eduardo foi fazer visita aos seus clientes. Ao entrar na UTI, Eduardo visitava leito por leito, fazendo um relato aos interessados, como era costume. Quando chegou no leito de Evaldo, Eduardo, fixando o olhar em seu rosto, que, a essa altura, estava um tanto diferente em razão de hematomas adquiridos durante a queda pelos tiros e a farta barba que já não era feita há mais de  uma semana, surpreendeu-se. O que Evaldo estava fazendo ali, o que fizera de sua vida para encontrar-se num leito de UTI de um hospital? Por que levara aqueles tiros? Eduardo, aos poucos, foi se lembrando da escolha que ele tinha feito quando estavam nas ruas de um bairro lá no Rio de Janeiro. Isso mesmo, foi uma má escolha e este é o resultado. Imediatamente, Eduardo procurou ajudar Evaldo e recomendou à enfermeira Léa, amiga já de algum tempo, que desse especial atenção a ele, cuidando para que nada lhe faltasse. Pediu que o avisasse quando ele recuperasse a consciência, a fim de que pudesse conversar com Evaldo. Asseverou que qualquer despesa, que fosse necessária, deveria ser comunicada a ele. Assim foi feito. Léa cuidou para que Evaldo tivesse toda atenção possível. Ao fim de uma semana, ele já apresentava outro quadro de saúde, um quadro mais favorável. Aos poucos, foi recobrando a consciência e, embora enfraquecido, demonstrou vontade de sair dali. Tinha medo de  que os policiais o prendessem. Afinal, ele estava devendo. De fato, dadas as circunstâncias do acontecido, policiais estiveram no hospital para interrogá-lo, mas devido aos seu estado de saúde não tinha sido possível. Léa, procurando por Eduardo, relatou a ele as condições do paciente e sua intenção. Eduardo, logo que pôde, foi ter com Evaldo que, assustado e sem entender o que estava acontecendo, começou a chorar como se estivesse vendo um anjo. Uma saudade funda entremeada de uma alegria incomum irrompeu do coração de ambos que se abraçaram como se fossem irmãos que não se viam há muitos anos. Naquele instante, todo o temor, toda dúvida, toda insegurança como que, por um passe de mágica, esvaneceu do coração de Evaldo. Estavam ali, olhando um para o outro, com o coração cheio de perguntas, cheio de bons sentimentos de um para com o outro. Vendo que Evaldo se mostrava muito emocionado e temeroso que isso pudesse prejudicá-lo, Eduardo pediu à enfermeira que desse a ele um calmante. Antes, porém, o tranquilizou, dizendo que ele poderia contar com sua ajuda e que mais tarde viria para conversarem. Evaldo, com os olhos brilhando de alegria, adormeceu. Pensativo, Eduardo seguiu para sua residência e, enquanto caminhava, lembrou-se da escolha que fizera àquela época, fazendo o mudar-se para outra cidade onde encontrou Helena que lhe ajudou. Por que Evaldo não teve a mesma sorte? Imaginava o quanto Evaldo havia sofrido até chegar a este ponto. Lembrou-se dos instantes que passaram juntos, do jeito acomodado e revoltado de Evaldo, da dificuldade que tinha para fazer amigos, se relacionar com as pessoas, arranjar uma namorada. Porém, agora, já não eram mais adolescentes. Por sua perseverança e trabalho, Eduardo sabia que vencera os percalços do caminho. O mesmo, pelo visto, não aconteceu a Evaldo. Pensou na ajuda que tinha recebido, como soubera aproveitar essa ajuda. Como fizera por merecê-la, como valorizou esta oportunidade. Refletindo em sua vida agora, Eduardo tomou uma singular decisão: não importa o que esteja acontecendo a Evaldo, eu darei a ele a oportunidade de se reerguer. Não importa se ele a merece, ele é meu amigo e eu quero que ele tente outra vez. Vou dar a ele a chance de voltar a estudar, vou fazer com que ele tenha onde morar, acumular condições para trabalhar, enfim, ter uma vida nova. Se me foi dada uma chance assim, por que ele não vai aproveitar a chance que posso dar a ele? Com o coração cheio de alegria e imbuído do mais humilde sentimento de fraternidade, Eduardo, no dia seguinte, procurou Evaldo e lhe propôs ir morar num pequeno apartamento de que dispunha num bairro próximo. Em troca, Evaldo deveria voltar a estudar para reunir condições para trabalhar e se realizar. Não precisava preocupar-se com as despesas. Eduardo poderia ajudá-lo também nesse aspecto.  E assim foi feito. Passados alguns anos, hoje, ambos, além de amigos, trabalham juntos, pois, Evaldo dedicou-se ao estudo de Enfermagem, tendo adquirido o diploma em três anos num curso profissionalizante próximo dali. Eduardo, feliz, agradece a Deus a oportunidade de, pelo amor incondicional, ajudar e também de ter sido ajudado num momento difícil de sua vida. Quando pode, Eduardo vai visitar Helena e Faísca que, toda vez que o vê, lança-se em seu colo, beijando-o, lambendo-o como se fosse a última vez que o veria. Helena está feliz e, humildemente, agradece a Deus lembrando sempre que esta dádiva está ao alcance de qualquer coração benevolente e livre do egoísmo. O amor não encontra barreiras quando pessoas compreendem que só através da fraternidade, da amizade verdadeira e do companheirismo as dificuldades são vencidas e as oportunidades são disponibilizadas pelo merecimento de cada um.

 

Um Espírito Amigo!                      Carlos Alberto – 24/09/2012.


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